Assim agora como sempre acontece, a visão que nos persegue, a luz do sol na lama, o braço de rio, o mangue. Ao redor enormes caranguejos brigam por uma fêmea em tempo de acasalar. O doce som do remo na água salobra da maré. Ali ao lado há, fincada na lama, a antena parabólica simbolizando o reinado da raça humana. Mas aqui, no reino da lama, herói é quem tem a maior pinça.
Aqui, onde o cheiro da maresia se mistura ao hálito podre do mangue, onde o tempo escorre lento como a lama entre os dedos, o mundo pulsa em outra frequência. O rádio chiado na palafita toca um maracatu elétrico enquanto os caranguejos seguem sua dança de guerra, suas pinças afiadas como espadas de um exército anfíbio.
A maré sobe e desce como um tambor invisível que marca o compasso da vida. O pescador com a pele curtida pelo sol enfia os pés descalços na lama e sente o ritmo do chão. Seu olhar segue a trilha dos siris, os olhos de ponteiro atento, lendo os sinais de um universo onde antenas parabólicas e raízes retorcidas convivem no mesmo compasso.
Do outro lado da margem, uma lancha velha e coberta de adesivos de bandas esquecidas solta um ronco cansado. Um garoto com um boné virado para trás joga um anzol e espera, sem pressa, porque no mangue a pressa é ilusão. O tempo se curva como um rio preguiçoso.
Mais além, um palafita de madeira se ergue desafiando a gravidade, suas tábuas sustentadas por troncos escuros mergulhados na lama funda. Lá dentro, um rádio pirata transmite em AM a revolta dos que aprenderam a falar a língua dos crustáceos e das marés. Uma voz rouca, feita de fumaça e cachaça, declama um manifesto tropicalista, uma ode ao caos verde que resiste entre os tentáculos de concreto.
E na lama, onde o mundo realmente acontece, uma nova espécie de guerreiro nasce. Não são heróis de capa e espada, mas de pinça e carapaça dura, filhos de um Brasil anfíbio que escapa entre os dedos de quem tenta domá-lo. No fim das contas, enquanto os arranha-céus tentam tocar o céu, é no mangue que pulsa a verdadeira vida.
Aqui, onde a lama é mãe e pai, onde o céu se reflete quebrado nas poças de maré baixa, o tempo engole o próprio rastro. A cidade cresce ao redor como um monstro de concreto, mas aqui no mangue a regra ainda é outra: a vida se agarra às raízes retorcidas, às pernas fincadas na lama, ao ciclo eterno do subir e descer das águas.
O silêncio aqui não existe. Há sempre um farfalhar de asas, um estalo de caranguejo brigão, um suspiro da maré. E no meio disso tudo, vozes humanas se misturam ao coro da natureza, um batuque improvisado num casco de canoa, um assovio que se perde no vento.
Na sombra de um cajueiro torto, um homem velho puxa um cigarro de palha e fala com o rio como quem conversa com um velho amigo. Ele sabe que a água escuta, que a lama tem memória. Conta histórias que ninguém mais lembra, lendas de pescadores encantados e monstros que dormem no fundo da maré.
Mais adiante, os meninos correm descalços pela trilha de barro, o pé ligeiro como o de um siri esperto. Pulam entre as raízes, fazem da lama sua pista de corrida. Ali, cada passo é um mergulho na história, um rastro que será apagado quando a maré voltar.
No meio do mangue, entre folhas largas e troncos afogados, um rádio toca um reggae distorcido. A batida se mistura ao coaxar dos sapos, ao grito rouco das garças. Tudo é som, tudo é vibração, e a natureza dança sem pedir permissão.
Um bote passa devagar, deslizando na água espelhada. Um homem rema com calma, sabendo que no mangue quem tem pressa tropeça. No fundo do casco, um peixe ainda se debate, prateado e vivo, mas seu destino já está selado.
Mais longe, na beira da cidade, um prédio espelhado se ergue como uma miragem arrogante. Mas seu reflexo no rio é trêmulo, distorcido, frágil. O mangue ri de sua soberba. Ele já viu impérios surgirem e sumirem na lama.
Aqui, onde a vida pulsa sem pedir licença, onde as antenas parabólicas tentam captar o mundo mas não compreendem a essência do chão, o mangue segue seu próprio ritmo. As regras são antigas, escritas na correnteza, ditadas pelo vai e vem das marés.
Na mesa de uma palafita, um rádio de pilha sussurra uma embolada nervosa. O poeta do mangue canta sobre o que vê, sobre o que sente. Seu verso é feito de barro e resistência, seu ritmo é a batida dos remos na água.
Uma mulher cruza a ponte improvisada com um balde cheio de ostras. Seus passos são firmes, seu olhar cortante como uma lâmina de cana. Ela conhece os segredos do mangue, sabe ler as pegadas na lama, sabe quando a tempestade vem antes mesmo que o vento sussurre seu aviso.
A noite cai devagar, tingindo tudo de cobre e sombra. As primeiras estrelas piscam sobre as águas escuras, refletidas nas poças entre as raízes. O mangue dorme com um olho aberto, atento ao menor sinal de mudança.
Os caranguejos, reis da lama, retomam seu baile silencioso. Brigam, namoram, escavam buracos, seguem seu destino traçado no instinto. Eles não se importam com o progresso ou com a ruína. São os verdadeiros donos desse reino de lama.
E assim, entre a cidade e a selva, entre o asfalto e a maré, o mangue segue vivo. Sua pele é feita de raízes, sua voz é o eco dos bichos, seu sangue corre lento nos braços de rio. Ele resiste sem pressa, porque sabe que o tempo está ao seu lado.
Lá no fundo, onde a lama é mais densa e os troncos são mais antigos, algo observa. Uma entidade sem nome, um espírito feito de sombras e folhas. Ele não teme a cidade, pois sabe que o mangue sempre encontra um jeito de engolir o que tentam impor a ele.
E quando tudo cair, quando as torres se desfizerem em pó e o asfalto rachar, será a lama que cobrirá tudo, será o mangue que tomará de volta o que sempre foi seu.